sábado, 31 de dezembro de 2011

Um quase-contra-exemplo: o Mágico Logarítmico

Em O poder da Matemática (Dienes, 1975), o Prof. Zoltan P. Dienes, bastante conhecido pelas transposições para a sala de aula de Matemática das idéias de Piaget sobre a psicogênese do conhecimento, explora intensamente as Alegorias como recurso pedagógico. Os princípios da "expressão múltipla" e do "contraste", que Dienes formula inicialmente, servem de base para a construção ao longo do texto de inúmeras "experiências de pensamento", muitas delas de natureza alegórica. Examinemos uns de seus exemplos: o do "Mágico Logarítmico":

    "Um mágico habita um palácio circular no meio de uma cidade, que ele controla inteiramente. Pelos seus poderes mágicos ele supre todo o dinheiro que acha que as pessoas deveriam ter. Elas vivem em casas ao longo de avenidas que partem radialmente do palácio circular. As pessoas que habitam uma mesma casa recebem sempre a mesma quantia de dinheiro, de modo que tenham o mesmo padrão de vida e não fiquem com inveja umas das outras. Ao longo do lado direito das avenidas (vistas do palácio) há casas; há anexos pertencentes às casas ao longo do lado esquerdo; as avenidas são numeradas, como em Nova Iorque, 1ª Avenida, 2ª Avenida, 3ª Avenida, e assim por diante, aumentando os números das avenidas no sentido anti-horário, a partir da lª Avenida. As pessoas ricas moram de um lado da cidade — suas avenidas ocupam somente a metade da cidade, isto é, irradiam a partir somente da metade do palácio. No outro lado da cidade moram as pessoas mais pobres. As avenidas deste lado são numeradas com os mesmos números, sendo estas avenidas continuação da 2ª, 3ª, e outras avenidas do outro lado do palácio. Naturalmente há também uma primeira avenida na parte pobre, que é uma continuação da primeira avenida da parte rica.

    Em cada avenida as pessoas das casas mais próximas ao palácio ganham diariamente uma quantia de 1 libra. Suas casas têm marcado sobre a porta o numeral zero, isto é, 0. Estas casas formam um círculo ao redor do palácio. As outras casas são numeradas 1, 2, 3, 4..., etc. à medida que se distanciam do palácio. Todas as outras pessoas nas casas da Primeira Avenida, quer na parte rica quer na pobre, também ganham uma quantia de 1 libra diariamente. Mas na Segunda Avenida, na parte rica, à medida que se distanciam do palácio, os ocupantes de cada casa ganham exatamente duas vezes tanto quanto os ocupantes da casa anterior. Portanto, o morador da casa n° 4 ganhará duas vezes a quantia daqueles que moram na casa nº 3. Na Terceira Avenida da parte rica as casas são ainda numeradas 1, 2, 3, 4..., etc. à medida que se afastam do palácio, mas desta vez cada ocupante de uma casa ganha três vezes o que ganha um ocupante da casa anterior. Na 4ª Avenida, os ocupantes das casas recebem quatro vezes tanto quanto os ocupantes da casa anterior e assim por diante para todas as avenidas.

    Do lado pobre as casas sao numeradas com números negativos. A casa seguinte à casa-zero tem o número -1 em cada uma das avenidas, a casa seguinte é sempre -2, e assim por diante. Na Segunda Avenida, no lado pobre, à medida que alguém se afasta do palácio, os ocupantes das casas ganham metade daquilo que os ocupantes das casas anteriores obtiveram; na Terceira Avenida, um terço e assim por diante.

    A todas as pessoas é atribuído um trabalho, e os olhos do mágico estão em toda parte durante o tempo todo, de modo que ele sabe se alguém executou devidamente ou não o trabalho do dia. O bom trabalho é recompensado, o mau trabalho é punido. Ele tem um sistema de rádio de modo que pode comunicar-se com qualquer pessoa em sua casa tão logo ela retorne do trabalho. Simplesmente tem que pronunciar as palavras mágicas e a recompensa ou punição instantaneamente acontece. Isto sempre toma a forma de uma alteração na quantia diária de dinheiro. Por exemplo:

    Hocus 1 na 2ª Avenida significa dobrar a quantia

    Hocus 2 na 2ª Avenida significa quadruplicar a quantia

    Hocus 3 na 2ª Avenida significa multiplicar a quantia por 8

    Hocus 4 na 2ª Avenida significa multiplicar a quantia por 16

    Por outro lado:

    Pocus 1 na 2ª Avenida significa a metade da quantia

    Pocus 2 na 2ª Avenida significa dividir por 4 a quantia

    e assim por diante.

    De acordo com as regras da cidade, qualquer um que tenha sido sujeito a um 'hocus' ou a um 'pocus' tem que se mudar para outra casa na Avenida onde as pessoas estão ganhando a mesma quantidade de dinheiro.

    Logo, tornar-se-á claro que no lado rico 'hocus x' significa que você se distancia x casas do palácio, enquanto 'pocus x' significa que você se move x casas em direção ao palácio. Portanto 'hocus' é uma recompensa e 'pocus' uma punição.

    No lado pobre, por outro lado, um 'hocus' envolve movimento em direção ao palácio; e um 'pocus' leva o recebedor para longe do palácio. (Estas são contrapartes na estória das muito importantes relações matemáticas, e como as crianças trabalham através de estórias, devem tornar-se conscientes destas relações, primeiro como propriedades da estória e mais tarde como relações matemáticas puras.)

    Incidentalmente, mesmo para alguém no lado rico, uma punição 'pocus' pesada poderia colocá-lo no lado pobre".

Este formidável exemplo desenvolve-se, pleno de pormenores, ao longo de pelo menos quinze páginas do texto de Dienes. A meta é a compreensão das propriedades operatórias com potências e logaritmos. Nesse caso, no entanto, muitas outras concepções são introjetadas, configurando uma situação onde os efeitos colaterais — negativos, no exemplo, sobrepujam os resultados pretendidos.

De fato, examinando com mais vagar a textura da Alegoria proposta, percebemos que a forma como a realidade concreta é apresentada traduz um modo bastante discutível de concebê-la, oscilando entre uma abordagem ingênua e um pensar ideologicamente comprometido.

Postula-se que existem ricos e existem pobres. A todos é atribuído um trabalho. E o desempenho que justifica a ascensão de uns, a queda de outros, desempenho este julgado pelo mágico, onipotente, onisciente, detentor do critério de verdade absoluta, capaz de manipular a realidade ao seu bel-prazer, instituindo regras, postulando novas exigências e mantendo o controle total de tudo e de todos, com "seus olhos que estão em toda parte". O dinheiro aparece como algo obtido por se ter agradado ao mágico, ou então de forma mágica, não se relacionando com o que se produz, com o seu significado econômico mais prosaico, como se sugere no trecho seguinte:

    "Suponhamos agora que o mágico invente outra espécie de mágica. Decide chamá-la DIFERUS. Funciona da seguinte maneira: DIFERUS 1/2 significa que, esteja onde você estiver na Avenida 2 1/2, você se muda para a Terceira Avenida... Você não vai morar lá, apenas verificar quanto as pessoas daquela casa estão recebendo a mais que você. Então, tome duas vezes a diferença e este será o seu aumento de pagamento...".

Mesmo aos mais recalcitrantes à inserção da dimensão política no discurso matemático, não parece natural a caracterização da realidade da forma que o texto deixa transparecer, totalmente dependente dos caprichos de um mágico todo-poderoso.

Poder-se-ia argumentar que tais preocupações com efeitos colaterais indesejáveis assemelham-se a uma perquirição de chifres em cabeça de cavalo. O próprio Black, em Modelos e metáforas (ja citado anteriormente), ressalva que

    "As metáforas subordinadas que uma metáfora implica são como os harmônicos de um acorde musical: conceder-lhes demasiado peso é o mesmo que fazer com que soem tão fortemente quanto as notas principais e igualmente desatinado".

É necessário, no entanto, que no engendramento da Alegoria o autor não dê margem a que as notas principais soem tão baixo- que corram o risco de serem confundidas, desatinadamente, com alguns harmônicos secundários, ou que alguns desses harmônicos possam soar tão alto que só prestemos atenção neles.

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