terça-feira, 14 de junho de 2011

A teoria do azar

Robert Matthews
O físico inglês explica por que torradas caem com a manteiga para baixo e tantas outras coisas dão errado na vida das pessoas

No café da manhã, a torrada escorrega do prato e cai no chão com o lado da manteiga virado para baixo. Quando se tenta escolher às pressas as meias no guarda-roupa, o par raramente combina. Na hora de fechar a porta, a chave correta é uma das últimas do chaveiro. Azar ou simples coincidência? 

Nem uma coisa nem outra, segundo o físico inglês Robert A.J. Matthews, 37 anos. Ele é um especialista nesses pequenos aborrecimentos diários que se tornaram conhecidos como produtos da lei de Murphy, aquela segundo a qual, se algo tem chance de dar errado, essa coisa, pode ter certeza, vai dar errado mesmo. Matthews transformou-se num cientista popular ao provar que a queda da torrada com a manteiga virada para o chão ou os pares de meia que não combinam são resultado de princípios elementares da matemática e da física. Formado pela Universidade de Oxford, já teve artigos publicados nas principais revistas científicas. Uma delas, Scientific American, estampou-o na capa em abril passado. Casado, pai de uma menina e dois meninos, Matthews mora com a família em Cumnor, pequena cidade do interior da Inglaterra, de onde deu a seguinte entrevista a VEJA:

Veja - Qual a origem da lei de Murphy?

Matthews - O autor dessa expressão, o capitão da Força Aérea americana Edward Murphy, foi a primeira vítima conhecida de sua própria lei. Em 1949, ele participava de testes sobre os efeitos da desaceleração rápida em piloto de aeronaves. Para medir isso, construiu um equipamento que registrava os batimentos cardíacos e a respiração dos pilotos. Certo dia, Murphy foi chamado para consertar uma pane no equipamento e descobriu que havia um erro de instalação em todos os eletrodos. Foi aí que ele formulou a teoria segundo a qual as pessoas sempre optam pelo jeito errado de construir determinado equipamento se houver duas maneiras diferentes de fazê-lo. Na prática, era um bom princípio de engenharia de segurança, mas acabou se popularizando com uma lei capaz de explicar os aborrecimentos do dia-a-dia. Como o próprio Murphy previra, havia duas formas de entender o seu princípio e as pessoas escolheram a errada.

Veja - O senhor concorda que, quando alguma coisa tem chance de dar errado, dá mesmo?

Matthews - Muitos dos aborrecimentos do cotidiano são bem mais freqüentes do que gostaríamos. Em geral, essas chateações não decorrem de uma grande conspiração contra o bem-estar da humanidade, mas de princípios científicos simples. O problema é que, muitas vezes, os próprios cientistas não enxergam isso e preferem acreditar que esses azares são produto da nossa memória seletiva, que nos faz lembrar mais facilmente dos episódios que dão errado do que dos que dão certo.

Veja - Por que razão o senhor se interessou pela lei de Murphy?

Matthews - Comecei a estudar o assunto há uns três anos, depois de ler o relato de um experimento de física numa revista científica. O artigo mostrava que, ao cair de uma mesa, um livro pousava muito mais vezes com a capa virada para o chão do que para cima. Achei o resultado intrigante porque, do ponto de vista da lei das probabilidades, as chances de a capa cair virada para o chão deveriam ser de apenas 50%, uma vez que o livro só tem duas faces. Quando repeti o teste em casa, percebi que o resultado da queda de um livro a partir da borda de uma mesa não tem nada a ver com possibilidades matemáticas, mas com a ação da gravidade e um pouco de fricção. Dessa forma, desvendei também um dos princípios mais célebres da lei de Murphy, o da torrada que sempre cai com a face amanteigada voltada para o chão.

Veja - Como o senhor chegou a essa conclusão?

Matthews - Meus testes mostraram que uma torrada, um livro ou qualquer objeto de formato semelhante têm uma tendência natural de cair de cabeça para baixo porque o torque gravitacional não é suficiente para que eles girem completamente sobre si mesmos antes de chegar ao chão. Isso quer dizer que, ao despencar de uma mesa, a torrada nunca terá tempo de dar uma volta completa de maneira a atingir o chão com a manteiga para cima. A distância entre a borda da mesa e o solo só permite que ela dê meia-volta. Isso não tem nada a ver com azar, com o fato de um lado da torrada estar coberto de manteiga ou com a ação de algum gnomo invisível. É pura ciência básica. Se a distância entre o topo da mesa e o chão fosse maior, o resultado seria diferente e é provável que o lado da manteiga estaria salvo.

Veja - Nesse caso, a lei de Murphy só funciona em virtude da altura das mesas?

Matthews - Exatamente. Mas isso leva a novas perguntas: por que as mesas não têm altura maior? Porque isso não seria conveniente nem confortável à anatomia humana. E por que os seres humanos não são maiores de modo a permitir que as mesas sejam mais altas? Porque qualquer ser bípede e de forma cilíndrica como os seres humanos não pode ter mais de 3 metros de altura. Pelas leis da física, acima desse porte ele correria risco de vida. Um homem ou uma mulher com 3 ou 4 metros de altura quebraria facilmente a cabeça numa queda. Para que uma torrada caísse com a face amanteigada para cima, seria necessário que a mesa tivesse acima de 2 metros de altura. Isso nunca será possível porque a adaptação dos seres humanos às leis da física impede que tenham estatura muito maior que a atual.

Veja - O senhor quer dizer que as pessoas estão condenadas a sempre ver as torradas cair com a manteiga para baixo?

Matthews - Uma solução seria passar a manteiga na face de baixo da torrada, mas isso iria complicar muito a vida das pessoas. Pode parecer estranho, mas se uma torrada estiver caindo da mesa o melhor a fazer é dar-lhe um tapa na horizontal. Isso vai aumentar a sua velocidade e impedi-la de virar. Não salva a torrada, mas evita ter de limpar a manteiga no chão.

Veja - Em 1993, a rede de televisão BBC reuniu 300 pessoas para jogar torradas para cima e observar como caíam no chão. Só em metade das tentativas as torradas caíram com a manteiga para baixo. O que saiu errado?

Matthews - Eles não fizeram o teste direito. A situação proposta pela BBC era ridícula. Ninguém fica jogando torradas para o alto durante o café da manhã. Os meus experimentos levaram em conta o que ocorre no cotidiano, quando a torrada escapa pela borda da mesa e vai direto para o chão sem a interferência de nenhuma outra força que não a da gravidade e a da fricção.

Veja - Quando uma pessoa vai ao banco ou ao supermercado, geralmente sai com a sensação de que a fila escolhida era a mais lenta. Existe alguma explicação científica para isso?

Matthews - Pela lei das probabilidades, é sempre mais provável que você pegue uma fila mais lenta. Num supermercado com cinco caixas, as possibilidades de pegar a fila que naquele momento específico vai andar mais rápido que as demais é de somente 20%. Nesse caso, você tem 80% de chances contra você. É uma probabilidade bastante elevada. Significa que, em cinco chances, você tem quatro de entrar numa das filas mais lentas. Não se trata de azar, mas de simples conta matemática. Se alguém observar o ritmo das cinco filas durante o dia inteiro, perceberá que, em média, todas andam na mesma velocidade. A sensação é diferente quando se entra numa delas em determinado momento do dia.

Veja - E por que motivo quando se tenta abrir a porta de casa com um molho de chaves na mão a correta é sempre a última?

Matthews - As chances de que a chave correta seja a primeira ou a última são exatamente iguais. As possibilidades de acerto, porém, diminuem de forma proporcional à quantidade de chaves no molho. Quem chega em casa depois de um dia de trabalho geralmente está cansado, quer abrir logo a porta e sempre tem a esperança de acertar na primeira tentativa. Num chaveiro com duas chaves, as chances de acerto são de 50%. Num molho maior, com dez chaves, a possibilidade diminui para apenas 10%. Ou seja, nesse caso há nove chances de erro contra apenas uma de acerto. As chances aumentam bastante depois de feitas as cinco primeiras tentativas, quando resta menos da metade das chaves a ser experimentadas na fechadura. O problema é que, ao chegar a esse ponto, as pessoas já estão convencidas de que há uma conspiração do chaveiro, do universo e da matemática contra elas.

Veja - O senhor não acredita em coincidência, sorte ou azar?

Matthews - Não, o que há são probabilidades matemáticas de que alguma coisa aconteça ou não. Veja o caso dos aniversários. Muitas pessoas se espantam quando descobrem que outras nasceram no mesmo dia que elas, considerando que um ano tem 365 dias. Matematicamente, no entanto, isso é muito provável. Se você juntar um grupo de 23 pessoas escolhidas ao acaso, as chances de que duas façam aniversário no mesmo dia é de 50%. Para provar isso, estudei as datas de nascimento de 22 jogadores mais o árbitro de dez jogos de futebol na Inglaterra. Na teoria, eu deveria encontrar cinco aniversários coincidentes em cada partida. Acabei achando seis, o que está dentro da margem de erro. Portanto, se você anda à procura de coincidências, certamente vai achá-las porque, nesse caso, a matemática joga a seu favor.

Veja - Outra regra da lei de Murphy diz que, numa gaveta de guarda-roupa, a chance de uma meia com par desaparecer é maior do que a de outra, solitária. Por quê?

Matthews - Imagine que você tenha uma gaveta com dez pares de meias. Por alguma razão, uma única dessas meias se perde. A questão é saber qual será a próxima meia a desaparecer. Usando um ramo da teoria das probabilidades chamado combinações, é fácil entender que se uma segunda meia se perder é mais provável que será uma entre os nove pares completos do que aquela que está sozinha. Quando a terceira meia desaparecer, continua sendo extremamente mais provável que a próxima seja a de um par já formado. Se esse desaparecimento de meias continuar, na metade da história você vai ficar com somente dois pares completos e com outras seis meias avulsas.

Veja - O senhor quer dizer que é muito improvável que uma pessoa consiga manter uma gaveta com pares de meias completos?

Matthews - Sim, e isso tem sustentação científica. Numa gaveta com dez pares de meias, é quatro vezes mais provável que você algum dia acabe sem um único par completo do que com todos eles completos. Não há como fugir dessa fatalidade, a menos que você compre apenas dois tipos de meias, metade preta e metade azul, por exemplo.

Veja - Por que quando alguém sai à rua com guarda-chuva geralmente não chove?

Matthews - Porque a chuva é um fenômeno mais raro do que se imagina. Mesmo aqui na Inglaterra, onde chove muito e o serviço meteorológico é considerado eficiente, matematicamente a chance de chover em determinado horário é sempre menor que a de haver sol ou apenas céu nublado. No meu estudo, trabalhei com a possibilidade de chuva na hora do almoço. As pesquisas mostram que nesse horário chove apenas uma vez em cada dez dias chuvosos. Então, mesmo que o serviço meteorológico preveja chuva para amanhã, a possibilidade de que chova no exato momento em que você sair à rua é pequena.

Veja - Além de criar curiosidades de almanaque, que utilidade prática pode ter o estudo da lei de Murphy?

Matthews - É uma forma de tornar mais populares e didáticos os conceitos da física e da matemática. Quando você toma como exemplos situações rotineiras, como a queda da torrada e os pares de meias que não combinam, fica mais fácil explicar coisas que, do contrário, soariam abstratas demais. O estudo da lei das probabilidades tem aplicações práticas muito sérias e úteis. Serve, por exemplo, para tentar prever a proximidade de um terremoto. Grandes terremotos são fenômenos muito raros. A única certeza que se tem hoje é que, em algum momento, haverá um terremoto de grandes proporções em San Francisco, nos Estados Unidos, e em Tóquio, no Japão. Isso pode acontecer no mês que vem ou em cinqüenta anos. O estudo das probabilidades pode salvar milhares de vidas nessas cidades. Infelizmente, por enquanto seria tão caro e improvável montar um serviço de previsões eficiente que a melhor solução é investir o dinheiro em tecnologia de construção de edifícios que sobrevivam à catástrofe.

Veja - No ano passado, o senhor recebeu o Prêmio Ig Nobel (junção satírica da palavra ignóbil com Nobel), atribuído de brincadeira pelos estudantes do Instituto de Tecnologia de Massachusetts a pesquisas consideradas inúteis. O senhor também se considera uma vítima da lei de Murphy?

Matthews - Eu acho que saí ganhando com a brincadeira. O Prêmio Ig Nobel foi anunciado poucos dias antes e ganhou tanto destaque na imprensa inglesa que acabou ofuscando o verdadeiro Prêmio Nobel. Talvez porque seja mais fácil entender as torradas que caem da mesa do café da manhã do que a teoria de superfluidos do gás hélio, a pesquisa premiada com o Nobel de física do ano passado.

Veja - Na sua vida pessoal, as coisas costumam dar mais certo do que errado? 

Matthews - Algumas dão certo e outras tantas dão errado, como na vida de qualquer pessoa. Ninguém pode levar a lei de Murphy ao pé da letra e achar que ela é culpada por tudo de ruim que acontece. Se o seu carro quebrar quando você estiver atrasado para um encontro, é muito provável que a culpa seja sua porque deixou de levá-lo ao mecânico, e não do capitão Murphy. Afinal, na maioria das vezes o carro não quebra o tempo todo. Meus estudos sobre a lei de Murphy fazem sucesso porque mostram às pessoas que a ciência pode ser algo divertido e próximo do nosso dia-a-dia.

Por: Thomas Traumann

Caro leitor, qual é a parte do texto que você concorda com o  físico Mattews?  E qual você discorda? Por quê? 
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Referência:

Revista: Veja. 1997, Abril S.A.

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